Companhia de Lagos

 Companhia de Lagos (1443 ou 1446?) tinha o objectivo de incentivar e desenvolver o comércio africano e dar expansão ao trafico negreiro. A viagem inicial da Companhia de Lagos, foi empreendida por uma expedição de seis caravelas com o escudeiro Lançorote de Freitas ao comando que, transportou 235 cativos  de África para Lagos (tudo legitimado por uma Bula Papal, claro; e em parceria com o Infante). O primeiro grupo de cativos chegou à costa Portuguesa pela mão de Antão Gonçalves, e logo os de Lagos quiseram a sua parte, organizando uma expedição, dando esta provavelmente origem à Companhia de Lagos.
 Zurara descreve a partilha e a venda deste grupo de cativos, na Porta da Vila em Lagos. Estes factos podem ser dados como plausíveis pela recente descoberta de um cemitério de negros a aprox. 350 metros do verdadeiro mercado de escravos, a Porta da Vila.



Gomes Eanes de Zurara

CAPITULO XXIV
COMO AS CARAVELAS CHEGARAM A
LAGOS, E DAS RAZÕES
QUE LANÇAROTE DISSE AO INFANTE


Chegaram as caravelas a Lagos, donde antes
partiram, havendo nobre tempo de viagem, que
lhe não foi a fortuna menos graciosa na bonança
do tempo que lhe antes fora no filhamento da
presa; onde as novas chegaram ao Infante, que
antes poucas horas se acertara chegar ali, doutras
partes donde havia dias que andava.
E como vedes que as gentes são desejosas de
saber, uns cometeram de se chegar à ribeira,
outros se metiam nos bateis, que achavam
amarrados ao longo da praia, e iam receber seus
parentes e amigos, de guisa que em breve tempo
foi sabido seu bom aqueecimento, com o qual
geralmente todos eram alegres. E por aquele dia
abastou a esses principaes de beijar a mão ao
Infante seu senhor, contando-lhe em breve a soma
de seus feitos; e d'aí repousaram, como homens
que chegavam a sua terra e a suas casas, onde já
sabeis qual seria sua folgança entre suas mulheres
e filhos.
E no outro dia Lançarote, como homem que do
feito tinha principal cargo, disse ao Infante:

– «Senhor! Bem sabe a vossa mercê como haveis
de haver o quinto destes Mouros e de tudo que
ganhamos em aquela terra, onde por serviço de
Deus e vosso nos mandastes. E agora estes
Mouros, pelo grande tempo que andamos no mar,
assim pelo nojo que deveis considerar que terão

em seus coraçoes, vendo-se fora da terra de sua
natureza e postos em cativeiro, sem havendo
algum conhecimento de qual será sua fim; d'aí a
usança que não hão de andar em navios; por tudo
isto veem assaz mal corregidos e doentes; pelo
qual me parece que será bem que de manhã os
mandeis tirar das caravelas, e levar àquele campo
que está alem da porta da vila, e farão deles cinco
partes, segundo o costume, e seja vossa mercê
chegardes aí e escolher uma das partes, qual mais
vos prouver.»
O Infante disse que lhe prazia; e no outro dia
muito cedo mandou Lançarote, aos mestres das
caravelas, que os tirassem fora e que os levassem
àquele campo, onde fizessem suas repartições,
segundo antes dissera; pero primeiramente que se
em aquilo outra cousa fizesse, levaram em oferta
o melhor daqueles Mouros à igreja daquele lugar,
e outro pequeno, que depois foi frade de S.
Francisco, enviaram a S. Vicente do Cabo, onde
sempre viveu como catolico Cristão, sem havendo
conhecimento nem sentimento doutra lei senão
daquela santa e verdadeira em que todolos
Cristãos esperamos nossa salvação. E foram os
Mouros desta presa CCXXXV.

CAPITULO XXV
COMO O AUTOR AQUI RAZOA UM
POUCO SOBRE A PIEDADE QUE HÁ
DAQUELAS GENTES, E COMO FOI
FEITA A PARTILHA


Ó tu, celestial Padre, que com tua poderosa mão,
sem movimento de tua divinal essencia, governas
toda a in finda companhia da tua santa cidade, e
que trazes apertados todolos eixos dos orbes
superiores, distinguidos em nove esferas,
movendo os tempos das idades breves e longas,
como te praz!
Eu te rogo que as minhas lagrimas nem sejam
dano da minha consciencia, que nem por sua lei
daquestes, mas a sua humanidade constrange a
minha que chore c piedosamente o seu
padecimento. E se as brutas animalias, com seu
bestial sentir, por um natural instinto conhecem os
danos de suas semelhantes, que queres que faça
esta minha humanal natureza, vendo assim ante os
meus olhos aquesta miseravel companha,
lembrando-me de que são da geração dos filhos de
Adão!
No outro dia, que eram VIII dias do mês de
agosto, muito cedo pela manhã por razão da
calma, começaram os mareantes de correger seus
bateis e tirar aqueles cativos, para os levarem
segundo lhes fora mandado; os quaes, postos
juntamente naquele campo, era uma maravilhosa
cousa de ver, que entre eles havia alguns de
razoada brancura, fremosos e apostos; outros
menos brancos, que queriam semelhar pardos;
outros tão negros como etiopes, tão desafeiçoados
assim nas caras como nos corpos, que quasi
parecia, aos homens que os esguardavam, que
viam as imagens do hemisfério mais baixo.
Mas qual seria o coração, por duro que ser
podesse, ti que não fosse pungido de piedoso
sentimento, vendo assim aquela companha? Que
uns tinham as caras baixas e os rostros lavados
com lagrimas, olhando uns contra os outros;
outros estavam gemendo mui dolorosamente,
esguardando a altura dos ceus, firmando os olhos
em eles, bradando altamente, como se pedissem
acorro ao Padre da natureza; outros feriam seu
rostro com suas palmas, lançando-se tendidos no
meio do chão; outros faziam suas lamentações em
maneira de canto, segundo o costume de sua terra,
nas quaes, posto que as palavras da linguagem dos
nossos não podesse ser entendida, bem
correspondia ao grau de sua tristeza.
Mas para seu dó ser mais acrecentado,
sobrevieram aqueles que tinham cargo de partilha
e começaram de os apartarem uns dos outros, a
fim de poerem seus quinhões em igualeza; onde
convinha de necessidade de se apartarem os filhos
dos padres, e as mulheres dos maridos e os dos
irmãos dos outros. A amigos nem a parentes não
se guardava nenhuma lei, somente cada um caía
onde o a sorte levava!
Ó poderosa fortuna, que andas e desandas com
tuas rodas, compassando as cousas do mundo
como te praz! E sequer põe ante os olhos daquesta
gente miserável algum conhecimento das cousas
postumeiras, por que possam receber alguma
consolação em meio de sua grande tristeza! E vos
outros, que vos trabalhaes desta partilha,
esguardae com piedade sobre tanta miseria, e vede
como se apertam uns com os outros, que apenas
os podeis desligar!
Quem poderia acabar aquela partição sem mui
grande trabalho? Que tanto que os tinham postos
em uma parte, os filhos, que viam os padres na
outra, alevantavam-se rijamente e iam-se para
eles; as madres apertavam os outros filhos nos
braços e lançavam-se com eles de bruços,
recebendo feridas, com pouca piedade de suas
carnes, por lhe não serem tirados! E assim
trabalhosamente os acabaram de partir, porque
alem do trabalho que tinham com os cativos, o
campo era todo cheio de gente, assim do lugar
como das aldeias e comarcas de arredor, os quaes
leixavam em aquele dia folgar suas mãos, em que
estava a força do seu ganho, somente por ver
aquela novidade.
E com estas cousas que viam, uns chorando,
outros departindo, faziam tamanho alvoroço, que
poinham em turvação os governadores daquela
partilha.
O Infante era ali em cima de um poderoso cavalo,
acompanhado de suas gentes, repartindo suas
mercês, como homem que de sua parte queria
fazer pequeno tesouro, que de RVI 3 almas suas
aconteceram no seu quinto, mui breve fez delas
sua partilha, que toda a sua principal riqueza
estava em sua vontade, considerando com grande
prazer na salvação daquelas almas, que antes eram
perdidas, E certamente que seu pensamento não
era vão, que, como ja dissemos, tanto que estes
haviam conhecimento da linguagem, com

pequeno movimento se tornavam Cristãos; e eu
que esta história ajuntei em este volume, vi na vila
de Lagos moços e moças, filhos e netos daquestes,
nados em esta terra, tão bons e tão verdadeiros
Cristãos como se descenderam de começo da lei
de Cristo, por geração, daqueles que primeiro
foram bautizados.


CAPÍTULO XXXI
COMO DINIS DIAS FOI À TERRA DOS
NEGROS E DOS CATIVOS QUE TROUXE


Havia em Lisboa um nobre escudeiro que fora
criado del-Rei D. João (que foi avô dei-Rei D.
Afonso e pai deste virtuoso príncipe), que se
chamava Dinis Dias, o qual ouvindo novas
daquela terra [de] como nas caravelas já iam tão
longe desta costa, porque era homem desejoso de
ver coisas novas e de experimentar sua força,
embora já estivesse alojado naquela cidade (que é
uma das nobres das Espanhas) com proveitosos
ofícios que lhe foram dados em galwdão de seu
serviço, foi-se ao infante D. Henrique [a] pedir-
lhe que o aviasse [em] como fosse àquela terra,
pois, considerando como era criado e feitura de
seu pai e como tinha coração e idade para servir,
que se não queria de todo deixar escorregar nos
desenfadamentos do repouso. O Infante,
agradecendo-lhe sua boa vontade, fez logo armar
unia caravela na qual aviou [em] como o dito
Dinis Dias pudesse ir cumprir sua boa vontade. O
qual, partido com sua companha, nunca quis
amainar; até que passou a terra dos Mouros e
chegou à terra dos negros que são chamados
Guinéus. E ainda que nós já nomeássemos
algumas vezes em esta história por -Guiné. a outra
terra em que os primeiros foram, escrevemo-lo
assim em comum, mas não porque a terra seja
toda uma; pois grande diferença têm umas terras
das outras, e mui[tol afastadas estão, segundo
departiremos adiante onde acharmos lugar
disposto para isso. E indo fazendo sua viagem ao
longo daquele mar, viram a caravela os que
estavam na tema; da qual coisa foram muito
maravilhados. Pois segundo parece nunca haviam
visto nem haviam ouvido falar de semelhante
[coisa]; porque uns presumiam que era peixe,
outros entendiam que era fantasma; outros diziam
que podia ser alguma ave que corria assim
andando por aquele mar. E [arlrazoando-se,
assim, sobre esta novidade, falharam quatro
daqueles atrevimento de se certificar[em] de
tamanha dúvida. E meteram-se em um pequeno
batel, feito todo de um pau cavado sem outra
nenhuma adição (parece-me que deve ser [a] a
maneira de coucho, semelhante a alguns que há
nos rios de Mondego ou do Zézere, em que os
lavradores passam quando lhes é mister, nos
tempos dos grandes invernos).
E vieram assim um grande pedaço pelo mar
contra onde a caravela seguia a rota. E os que iam
dentro [de esta] não se puderam ter que não
[a]lparecessem a [seu] bordo. E quando os negros
viram que eram homens os que vinham dentro do
navio, trigaram-se de fugir quanto puderam. E
ainda que a caravela seguisse após eles, pela
fraqueza do vento, ficaram [eles] por filhar. E
indo assffn mais avante, toparam com outros
barcos, os quais vendo os nossos que eram
homens, espantados com a novidade de sua vista e
movidos com temor quiseram todos fugir. Mas,
porque o azo foi melhor que o primeiro, filharam
daqueles, quatro. Os quais foram os primeiros
negros que em sua própria terra foram filhados
por cristãos (nem há crõnica nem história em que
se conte o contrário).
Por certo não é esta, pequena honra do nosso
Príncipe, cuja poderosa força foi bastante para
mandar [em) gentes tão distantes do nosso Reino,
fazendo presas nos vizinhos da terra do Egipto.
Nem Dinis Dias, não deve ficar fora desta honra,
pois foi o primeiro que por seu mandado falhou
mouros naquela terra.
E seguiu mais adiante, até que chegou a um
grande cabo, ao qual puseram nome o Cabo
Verde. E diz[-se] que acharam aí muita gente.
Mas não achamos em escrito por que guisa [se]
encontraram com ela; ou se a viram do mar,
quando estavam no navio; ou se andavam
naqueles barcos fazendo sua pescaria. Basta
[saberl que eles não tomaram mais proveito
daquela viagem quanto (se] diz que sairam fora
em uma ilha onde acharam muitas cabras e aves,
de que houveram grande refresco. E assim [se] diz
que acharam ali muitas coisas desvairadas desta
terra, segundo adiante será contado.
E dali fizeram volta para este Reino. E conquanto
a presa não fosse tamanha como as outras que
antes vieram, o Infante a teve por mui grande, por
ser daquela terra. E assim fez por isso a Dinis
Dias e a seus companheiros grandes mercês.

In: Crónica dos feitos notáveis que se passaram na conquista
da Guiné po mandado do Infante D. Henrique Guiné, ed.
Torquato de Sousa Soares, Vol. II. Lisboa, 1981 (= História e
Antologia da Literatura Portuguesa – século XV, Fundação
Gulbenkian, pp. 44-45)




Comentários

vieira calado disse…
Bela postagem!

Com documentos... e tudo!

Bom Carnaval!

E que seja melhor do que o que assistimos todos os comuns dias,
de hoje!

Mensagens populares deste blogue

Deodato Santos - Artista? Figurinista? Escultor?

Chamou-lhe um Figo