A Ermida de Nossa Senhora dos Aflitos

São Pedro, o Pulgão e os Aflitos
por: José Carlos Vasques


Localizada próximo da estrada para Portimão e do sapal da Ribeira de Bensafrim e não longe do Molião, ergue-se uma pequena ermida de culto católico. A sua construção, segundo se presume, é muito antiga e surpreende nesse local isolado e, aparentemente, sem razões que a justifiquem. Porém, não é bem assim e, posto que para tudo existe uma razão, vamos passar a explicar.

Há longos anos teriam existido naquela área algumas villae romanas conforme atestam os vestígios de construções dispersas por um vasto campo arqueológico, já em parte estudado mas, com muito ainda por pesquisar em terreno, hoje, em fase de urbanização. A ermida, segundo se pensa, e diz, teria sido construída no local duma antiga construção romana pois parece ter havido aproveitamento de materiais dessa e doutras construções que aí existiram. É quase uma regra que os locais outrora ocupados por civilizações da antiguidade assistam, ao longo dos tempos, à sucessão de povos e culturas que vão aproveitando o que os antecessores deixaram e, assim, mantêm permanentemente a ocupação do lugar.

Toda a zona envolvente atesta uma forte ocupação romana, o Molião, Lacóbriga e a estrada romana que por esse local teria passado a caminho da ponte que ligava as duas margens da Ribeira de Bensafrim. Os romanos procuraram, preferencialmente, uma fixação em terrenos férteis e próximos do mar, essa via de comunicação de primordial importância e inesgotável fonte de recursos. E outro tanto fizeram os árabes.

Não se sabe ao certo a data de construção da ermida nem a atribuição ao seu orago S. Pedro, em Latim Petrus, a pedra angular da Igreja Católica. Embora tratando-se de um apóstolo pescador, todavia, aqui não advoga a causa dos pescadores, convergindo a sua acção, neste local, para os agricultores. As pragas que afectavam a agricultura eram, em tempos atrasados, encaradas como um mal de origem diabólica ou sobrenatural, levando as pessoas a recorrer à divindade.

A vinha foi, e ainda é, uma das culturas mais sujeitas a pragas e doenças, e uma delas é a praga dos pulgões ou afídios.Durante longos anos toda a encosta da Meia Praia - extenso anfiteatro sobre a baía de Lagos, voltado a Sul – foi uma óptima zona para essa cultura. Até a grande extensão dunar que corre ao longo da referida praia estava, em grande parte, ocupada com a cultura da vinha.

Cabe aqui descrever esta cultura nos areais da Meia Praia e os esforços e imaginação que tal actividade implicava. A areia, sendo fácil de arrotear, ajudava esse cultivo, havendo a vantagem da existência de água doce no subsolo, ainda que em pequena quantidade, mas com permanência ao longo do ano e a pouca profundidade. Para captá-la bastava sobrepor umas barricas velhas e desfundadas e, pacientemente, ir retirando de dentro a areia, construindo assim as paredes do poço. O espaço para plantio ficava num plano mais baixo. De forma rectangular, era cercado por um talude de areia que defendia a vinha da rudeza dos ventos que aí sopram. Todas estas pequenas cercas possuíam uma choupana que os viticultores construíam, formadas por um esqueleto de madeira revestido de junco e que lhes servia de residência temporária ou até mesmo, devido a falta de recursos, à sua fixação permanente.

A areia das dunas é pobre em nutrientes mas isso não constituía problema: o mar, em época de vendaval, todos os anos arroja à praia grandes quantidades de algas que, amontoadas longe da rebentação e depois secas, para facilitar o transporte, eram levadas para montureira onde se curtiam com outras matérias, formando adubo. As castas que aí dominavam eram o negra mole castelo e negra mole carocho (este mais escuro), ambas de pele muito fina, desbagando-se facilmente com o vento, razão para proteger a vinha com altos taludes ainda que a mesma fosse de pequeno porte. Por ser local muito soalheiro, beneficiando dos favores do astro-rei, cujos raios reverberavam na areia e devido, também, à adubação com algas impregnadas de preciosos sais, a uva aí produzida possuía elevados teores de doçura, bem como uma maturação temporã, sendo pois as primeiras a aparecer no mercado. Na encosta da colina, as vinhas ocupavam grandes espaços e foi, em tempos idos, um bom rendimento dos proprietários locais, pesando muito na economia da nossa cidade.

As castas cultivadas eram mais resistentes aos ventos e indicadas para fabrico de vinhos de mesa, ganhando qualidade com o envelhecimento. As castas conhecidas eram as seguintes: - manteúdo; perum; crato branco; moscatel e boal (brancas) – Pau ferro; trincadeira; crato preto; bastardinho; além de outras igualmente tintas.

Havia uma relação muito íntima dos lavradores das redondezas com a sua ermida de S. Pedro, hoje Nossa Senhora dos Aflitos. O pulgão, quando aparecia em grandes quantidades, era mesmo uma praga. As folhas encarquilhavam, a seiva escorria pelas varas das vides e tornava-se pasto de outros parasitas. A planta, pode dizer-se, ficava sem "sangue", as uvas perdiam todo o vigor e delas não se podia fazer vinho que prestasse, nem em quantidade nem em qualidade. Os meios de combate às pragas não existiam, só restava aos lavradores o recurso à divindade. Falavam com o Prior e, da igreja de S. Pedro saíam o Padre e o sacristão com a caldeira de água benta, rezando e excomungando os pulgões. E foi assim que a ermida ficou conhecida por S. Pedro do Pulgão. Os tempos foram correndo, os conhecimentos evoluíram e os combates às pragas tornaram-se suficientemente eficazes, este recurso foi esquecido e a igreja mudou de nome, isto é, de orago. Perdeu-se em fé, ganhou-se em tradição!

As aflições são uma constante na vida das pequenas comunidades e na maioria das vezes provocadas pelos fenómenos naturais como as secas e as cheias. Na nossa região os períodos de chuva alternam, frequentemente, com longos períodos de seca, as culturas perdem-se por falta de água e os poços secam; estes fenómenos eram muito piores no passado, do que hoje. Os homens não podem comandar os elementos da Natureza e as mulheres, que comandam a vida doméstica, são as que mais sentem essas desgraças, então, recorriam à protecção de Nossa Senhora e, em procissão com o Padre, iam pelos campos de olhos no céu pedindo a Deus e à Virgem "Água de Misericórdia" e a ermida ficou de Nossa Senhora dos Aflitos.

É de longa tradição a festa anual desta ermida, que se pode dizer quase uma romaria, que tem lugar no último Domingo de Agosto de cada ano, sendo muito frequentada por gente do meio rural mas também por citadinos. Um dos costumes que mais caracterizava a festa consistia no elevado número de melões e melancias que, por todo o lado, eram postos à venda, e o hábito arreigado, por tradição, de no local serem comidos.



Comentários

vieira calado disse…
Interessante ficar a melhor saber estas coisas.
Agora aí vai um comentário antigo, acerca das uvas:

Negramole
monteúde
se não fosse eu
morria tudo...

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