... estes gajos não se entendem nem à paulada, vou passear!

Era dia de escola, mas por qualquer razão rara deixaram-me preguiçar na cama (tal como hoje gosto de dormir de manhã), fiquei grato, todavia estranhei o sossego, a minha avó que me pregava sermões por eu dormitar mais do que a conta, estava lidando pela casa numa aflitiva bonança. Deixou-me curioso; fui averiguar, desci as escadas com muito cuidadinho, avizinhava-se um berro, claro. Lá estava a velha, espantosamente serena, não disse nada, – hoje tenho esta imagem como prova que a revolução foi pacífica – estava atenta ao rádio: tocava uma música estranha. Talvez fosse feriado, ou estava maluca. Perguntei se tinha de ir à escola, fui informado que não havia escola: tinha havido uma revolução, andavam aos tiros em Lisboa para derrubar o governo, tudo dito com um ar de alegria. Estava maluca de certeza: dias antes, contara-me com ar de orgulho que, quando de um atentado à bomba contra um tal de Salazar falhou, ela tinha ido de um lado a outro de Lisboa a pé em peregrinação, para entregar flores ao sortudo, tal não era a sua militância. As revoluções têm este efeito “secundário” nas pessoas, fiquei mais tarde a saber.
No outro dia quando a poeira assentou pude sair à rua, já não era a mesma de dois dias atrás, havia sorrisos que eu desconhecia e o ar era fresco e engraçado; há uns quinze dias, uma vizinha que era viúva, prostrou-se a gritos dilacerantes pela rua afora, houve comentários que previam que ia chorar para sempre: tinha-lhe morrido o filho na guerra. Não fora aquela coisa dos cravos a enfeitar G3's (diga-se de passagem uma mariquice quase poética) e aquela rua tinha ficado perpetuamente sobranceira àquela névoa de amargura.
Fui levado dias depois, pelo o meu pai, a ver uma manifestação (primeira e última) do dia 1º de Maio no mesmo sítio onde o Américo Tomás tinha “abençoado” a populaça. Estava tudo com ar de desconfiado, podiam andar bufos por lá e a coisa ainda não estava de pedra e cal; mas lembro-me que para o fim do dia toda a gente espetou dois dedos ao céu (como a meter o dedo nu cu da outra senhora) aos gritos de “MFA” e “O Povo Unido...”.
Antes deste dia, pelos meus anos, a família juntava-se toda lá em casa para contar histórias: tios e primos estavam em África espalhados pela tropa toda, e a coisa dava aventuras emocionantes por terra, ar e mar em que as partes sangrentas eram estrategicamente omitidas. Nos aniversários seguintes todos guerreavam “política”, a guerra é coisa menos barulhenta e também mais pacífica; nunca mais tiveram denominador comum.
Um desalento.
Comecei a dedicar-me a coisas mais essenciais: ir à praia, para tal bastava uma toalha a tiracolo e uns chinelos; sempre que havia oportunidade, ajudava os pescadores a descarregar o peixe, enchendo cestas de vime que eram atiradas e descarregadas no cais (coisas de camarada); a minha falta de jeito para a bola (aliás imortalizada pelo poeta Vieira Calado no livro “Estórias de Lagos & Arredores”, em prosa) deixava-me com outras opções, vagueava por todo o lado quando me apetecia, em absoluta contemplação da Criação (o mais próximo que cheguei de uma verdadeira experiência religiosa); de vez em quando parava na carpintaria do meu pai para construir objectos de madeira (espadas e coisas do tipo, para a malta brincar lá na rua). Destes dias guardo as memórias mais agradáveis, também eu tinha conseguido a liberdade, mas à minha maneira.

Comentários

vieira calado disse…
Pois e conseguiste bem...

ainda de tenra idade!

O que fará hoje!!!...

Deixa-me dizer que gostei

do teu texto.

Está muito bem esgalhado.

Um abraço.
francisco disse…
Não se entendem? Eu entendo perfeitamente o entendimento deles. Estão todos entendidos, querem é que nós pensemos que não há entendimento, que a coisa está preta (e está, mas não para eles).

E se fossem eles passear?
LUA DE LOBOS disse…
e que raio de entendimento este que até tem odor a... ai que apanho com pimenta na lingua!!!!
xi
maria de são pedro
inácio disse…
Aí vêm eles de c. ao peito (cravo).
Depressa outra flor que o cravo a rosa e a flor de laranjeira perderam o cheiro. Cum c. (cravo?).
Mena G disse…
Gosto das tuas memórias do 25 de Abril. Pena que espadas de madeira e chinelos de praia sejam objectos que nunca mais caíram em desuso desde essa altura...
;)
Fiah disse…
Gostei muito. Parabéns. Espero continuar a poder vir dar uma espreitadela de quando em vez.~

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