Numa aldeia do Algarve



Numa aldeia do Algarve

O Algarve não se circunscreve exclusivamente à orla costeira e suas praias. O Barrocal  (terra do barro e da cal) é uma faixa que atravessa longitudinalmente a província, entre a serra e o litoral. Geologicamente é um espaço reconhecível pelas elevações calcárias denominadas barrocos. Aqui, as vilas e as aldeias são salpicos brancos na paisagem ora verde ora castanha dos campos. No horizonte próximo perfilam-se os contrafortes da serra algarvia, a Oeste a Serra do Espinhaço de Cão e a Serra de Monchique, a Este a Serra do Caldeirão. Na vegetação autóctone predominam amendoeiras, figueiras, azinheiras, alfarrobeiras e arbustos como o zambujeiro e a murta. Nos vales prevalecem as culturas de regadio, particularmente os pomares de laranjeiras. A singularidade da sua formação geológica, das suas espécies vegetais e faunísticas, que condicionam o psicossomatismo dos seus habitantes, conferem a esta porção de território uma identidade própria.

A aldeia que evoco não é um sítio concreto desse barrocal algarvio, mas podia sê-lo. Nesta aldeia existem dois lavradores abastados e mais uns quatro ou cinco menos ricos. Em conjunto possuem terras suficientes para dar trabalho aos camponeses, trabalhadores humildes que vivem em pobres casas de grossas paredes em taipa. Alimentam-se estas gentes de batata, feijão, grão, couves e o mais retirado das pequenas courelas ou hortas, suas ou de arrendamento, e do suor do seu trabalho. Muitos vivem em casais e montes dispersos e distantes da aldeia. Os filhos têm de levantar-se muito cedo para palmilhar três, quatro, ou mais quilómetros, até à escola.

Não é o caso do Zé Pedro, que vive num monte fronteiro à escola da sua aldeia e que de um pulo atravessa a horta, galga a vala que limita a estrada e salta por cima do muro da escola de arquitectura típica do Plano dos Centenários, vencendo os escassos metros do recreio para entrar nessa casinha do saber pela porta das traseiras. Não sei em que tempo se vive, nem se já existem computadores, mas existem automóveis pois assim o denuncia uma velha lata de óleo deixada à beira da estrada, na intersecção do percurso do Zé Pedro e a que ele, invariavelmente, aplica um pontapé que a atira para o outro lado da estrada, à ida e à volta é a sina a que obriga a velha lata azul, ora para cá ora para lá.

Nas tardes de estio, sem escola para acatar, livre das lidas rurais de alimentar os moradores das pocilgas ou mudar a palha aos inquilinos da arramada, o percurso é diferente, longitudinal e descendente por essa estrada empoeirada que o leva para lá do moinho motorizado até ao ribeiro e ao pego onde se refresca, dando mergulhos de cima do penedo que limita um lado da enorme banheira natural. Nessa altura escondem-se, talvez debaixo da rocha, os poucos peixes que por aí resolvem a sua vida. Assim usa o tempo, nessa frescura da água corrente que vai engrossar, lá mais para baixo, em curso de água pujante a que chamam rio. Nisso se ocupa, ou espreitando por entre os caniços as moças que episodicamente procuram o mesmo recreio aquático; não nesse pego mas no das rosas, um outro fundão de água de acesso mais escuso. É nisso tudo que o Zé Pedro preenche as tardes de Verão dos seus 10 anos de idade.

Numa das três vendas da aldeia, a do Zé Gaspar, a que se acede pela porta da direita porque pela da esquerda entram as mulheres para a mercearia, meia dúzia de homens sentados em redor das pequenas mesas de madeira escura vão emborcando calços de aguardente de medronho. Não sei se ainda é Verão ou se estamos nalgum fim de tarde invernal, nem isso interessa pois o medronho bebe-se em qualquer altura. Ali, na obscuridade da venda, decorre a conversa languidamente em frases que arrastam minutos; que as falas de segundos nem frases são senão algaraviadas que obrigam a muita repetição e esforço de entendimento. Fala-se de coisas agrícolas e de animais, também de negócios e de caça, um pouco de futebol, menos de política e, ocasionalmente, de enredos sentimentais com maiores ou menores desenvolvimentos invulgares.

Entra o Zé Pedro, aproxima-se do balcão e pede ao parente Gaspar uns tantos rebuçados para jogar à lerpa. Enquanto o taberneiro atende o pedido do moço um dos homens interpela-o usando o curioso tratamento formal que nunca se ouve numa cidade dirigido a um jovem ou mesmo a uma criança “então você andou lá pelo pego das rosas a espreitar a minha priminha Isabel?”, a que o catraio responde, atrevido “a natureza é livre para ser vista e eu sempre gostei daquele pego, e não quero saber se por lá andam libelinhas a avoar, cobras d’água engolindo rãs, ou moças a banhar”. A conversa teria continuação, talvez demorada, se o Zé Pedro esquecesse os companheiros do jogo de cartas que o aguardam no átrio da escola, mas não o saberemos por mor de termos de desandar para outro sítio.

Vale da Vinha é um lugarejo com quatro casas e cinco famílias, não me questionem como é isso feito neste tempo que se descreve sabendo-se que hoje a demografia daria resultado inverso, talvez com uma só família numa aldeola de quatro casas. Abeirada à estrada principal, que talvez tenha alcatrão ou não, sendo tal facto indiferente para os burros do Amílcar Farinha que ali vive, pois quer pisem alcatrão, cascalho e seixos do ribeiro ou xisto despontando nos caminhos de terra, as ferragens que os calçam serão substituídas com a mesma periodicidade pelo António Curto, artífice habilidoso que em tempos também arrancara dentes a humanos, hoje mais dedicado à capadura de porcos pretos ou castanhos, nos entremeios do seu ofício de ferrador.

Nesse lugarejo cantam três galos, mas em diferentes momentos da madrugada, um cantará alguns minutos depois do primeiro como que sendo o seu eco mas o outro cantará mais tarde, apenas quando os primeiros raios de sol começam a espreitar pelo barranco que casa os serros da Corte Nova e da Moita Alta. É um galo pertinaz, que ignora vir a fenecer exactamente da mesma forma que os outros dois, recluso numa enorme panela assente na trempe sobre o lume de lenha que, lenta e apuradamente, o cozinhará enterrado num quilo e meio de batatas cortadas às rodelas.

O Tio Julião, septuagenário como muitos outros da pequena aldeia, olha desconfiado para os dois gatos que se roçam um pelo outro e contra a parede do cemitério, e um outro ainda que cruza a praceta empedrada que serve de largo central da aldeia quando nele não se descarregam carroças de palha ou cântaros de mel e aguardente. Suspeita que os felinos da aldeia, gordos e lustrosos, lhe racham as poucas telhas de vidro que tem na cobertura, modestas substitutas das janelas que a habitação não tem em quantidade suficiente. Da outra banda da escola, exactamente em frente à casa do Tio Julião, o Zé Pedro continua a melhorar a pontaria atirando pedras com o seu fiel atirador, a que na cidade chamam fisga, procurando acertar no pau da bandeira da escola. Entre acertos de pedras bem polidas e calibradas pelo ribeiro muitas voam para lá da escola indo aterrar em telhas transparentes e inocentes. O octogenário, desconfiado, continua a mirar os gatos considerando carregar a escopeta com sal grosso.

Toca o sino da Igreja para chamar os fiéis, naquilo que se pode considerar uma inutilidade acústica pois os trinta ou quarenta crentes já lá estão. O padre é que ainda não chegou, mas já vem a caminho disseram do Sobradinho, por telefone ou por sinais visuais ou sonoros que vencem num ápice uma dúzia de montes, sinais pouco conhecidos dos citadinos e que aqui não vamos revelar a sua natureza porque aos citadinos não fazem falta.

À saída da missa o Zé Pedro vira e revira a cabeça, ora para os lados da família de um dos abastados lavradores, mirando a jovem Leonor, o alvo das suas vigias no pego das rosas, que não a habitual companhia desta, a tal Isabel prima do que bebia na venda, ora mirando o lado oposto, o meio da estrada e a sua apreciada lata de óleo que aguarda, imóvel, o seu dedicado trato habitual. Olha para um lado e para o outro indeciso entre o chamamento da natureza e o apelo da tecnologia. É o berro que a mãe, já farta de o chamar, lhe arremete aos ouvidos que o desperta daquele meneio entontecido “vá, ande lá para casa que os porcos estão à sua espera”!

Francisco Castelo
2013-06-20

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