CAVALAS


A nossa língua - esta nossa pátria secular, tão cheia de irreverências - é um corpo vivo. Sempre em contínua metamorfose, por vezes transmutando palavras, limando-as, burilando os seus contornos, as suas terminações ou prefixação, outras vezes emprestando diferentes sentidos a vocábulos que pareciam imutáveis no seu conteúdo expressivo ou conotativo. Neste mundo em rápida transformação, particularmente no domínio das tecnologias e do comércio, é frequente palavras ou expressões estrangeiras passarem ao uso corrente, quer traduzidos ou adaptadas, quer na sua forma original, deformada ou não, consoante a maior ou menor flexibilidade da sua expressão oral. Institucionaliza-se uma dada pronúncia, se se trata duma palavra estrangeira escrita que se pretende manter integral, conforme os ditames da publicidade.  
Também há palavras "novas" que passam para as "usanças" do quotidiano (por vezes tão antigas como a própria língua... mas que, por uma qualquer razão, haviam caído em desuso), e se prestam a deficientes ou mesmo desapropriadas aplicações, causando a gargalhada ou até mesmo o escárnio, àqueles que se julgam depositários da verdade e do conhecimento, nestas matérias. Outras, são, mesmo, palavras novas e é frequente o seu indiscriminado uso, muitas vezes fora de qualquer propósito, ou por simples ignorância.
Tanto isto se aplica às simples palavras, às palavras compostas, quer sejam marcas comerciais ou siglas e até às designações de novos tipos de estabelecimentos industriais, comerciais ou outros, os "pronto a isto", "pronto a aquilo", os micro, os macro os hiper e os super, quer sejam eles lojas de roupa ou comidas, artigos de pesca e campo, ou de simples bugigangas banais e fúteis.
Para muitos, especialmente os mais idosos, a confusão é total.
Foi assim que, naquela manhã, pouco antes da sacrossanta hora do almoço, um sujeito bem conhecido na nossa praça, pelas constantes irreverências para com as aplicações correctas da linguagem e do uso e abuso indiscriminado dos álcoois seja a que hora for, eu assisti a uma cena de grande comédia e efeito, protagonizada pelo dito sujeito. Tão natural como a água, tão autêntica como a naturalidade quase pueril desse personagem tosco, mas de genuína cepa.
Passou junto ao Café onde eu estava, e o empregado, sem nada para fazer, vendo-o com um saco de plástico na mão, perguntou:
– Jesus, o que é que levas aí?
Então o sujeito parou e repetiu:
– Enh!... Qu´ é que levo aqui!?... – fez uma pausa, respirou penosamente e explicou.
Chegui a casa... perguntê à mulher o que havia pró almoço... – parou um pouco, a mirar o saco de plástico como se o tivesse visto pela primeira vez. E depois continuou, na pele da mulher, como que arremedá-la, mas notoriamente com pouco jeito, que não nos dizeres, mas na entoação.
Pró almoço? Atão o que é que queres que haja? Não há nada!
Atão... e as cavalas?                                                         
Q´ás cavalas?!... Atão na comeste as cavalas cozidas com orégones, ontem ao almoço!...
–  Ati... ati... – repetiu, quase gaguejando, neste jeito muito meridional de ir sempre simplificando tudo – de então para atão e de atão para ati –, na sobrou cavalas?                        
Atãona te lembras que comeste o resto das cavalas... alimadas, ontem à noite!?...          
– Quer dezer... já não há cavalas!...– falava como se estivesse a falar sozinho, lamuriando-se, extravsando a sua grande frustração.
Abriu o saco de plástico, vagarosamente, quase cerimoniosamente, e disse, quase num murmúrio.
Prontje!...Tive d´ir ao "pronto a vestir"!...–  explicou, enquanto sacava do saco de plástico... duas latas de conserva... de cavalas!
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em "Estórias de Lagos & Arredores", ed. C.M. Lagos 

Comentários

éf disse…
Uma conservinha pa desenjoar do pêxe?!
;)
Anónimo disse…
Jesus Martelo, certamente!

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