... ver o passaredo ...

Desde que cheguei a Lagos que me fascinam as aves que por cá descobri. E uma coisa é vê-las nos livros, em gravuras ou fotografias (prefiro as gravuras, de longe), outra, completamente diferente é vê-las à frente dos nossos olhos, permeadas pelo pára-brisas ou apenas filtradas pelo olhar vestido apenas de ajustamento optométrico.

Gaivotas, conhecia eu muitas. Claro. À semelhança dos pombos e dos pardais, acompanhando o grau de enraivecimento, proporcionalmente, a dimensão dos produtos de suas largadas voadoras, também as gaivotas vieram engrossar as hostes de pragas urbanas.

Mas, mesmo assim, as gaivotas de Lagos tiveram desde logo um significado muito próprio para mim, o branco das penas fundindo-se com o branco das paredes do rendilhado das ruas e das casas, a mancha vermelha na parte inferior do bico amarelo um toque de vida e cor a lembrar que há naturezas indomáveis que se libertam, livres, livrando-se mesmo de nós ou de nós escarnecendo nos gritos lancinantes com que rasgam a noite da cidade.

Talvez eu goste de gaivotas porque não moro em zona onde me perturbem, sonora ou de outras formas menos higiénicas. Mas já morei, e eram uma companhia na solidão das primeiras noites que passei no quarto alugado ali para os lados do Rossio de São João.

Um dia, fui à catedral do mundo. O primeiro dia em que me senti em casa, porque constatei claramente visto que a minha casa era um grão de areia numa galáxia espiral entre miríades de outras, foi quando fui pela primeira vez ao Cabo de São Vicente. E o estabelecimento da relação entre o dito santo e os corvos não demorou. Paralelamente à estreita estrada que lá conduz, gralhas aglomeravam-se ao longo dos fios esticados entre postes. Outras voavam, gritando do alto, protegendo a memória do santo do sacro promontório a quem ousasse esquecê-lo. Que subespécie de gralhas serão, não sei ao certo, mas chega-me a constatação de serem gralhas e de ser delas o promontório muito antes de os santos serem santificados pela nossa criação.

Na Meia Praia das primeiras e tímidas visitas viria a descobrir os borrelhos do fim do verão, quando a praia começa a purificar-se das hostes dos meses anteriores que nela apenas viram areia, sol, redes de vólei, odores a coco e outros bronzeadores, e as dunas mais não foram do que o lugar onde se aplacam solidões diversas. Timidamente em passinhos rápidos e saltitantes, bordavam a imensa toalha do areal com o ponto cruz das suas patitas na luz clara das manhãs calmas e sem vento. Como se só para mim.

Mais tarde, e em passeios matinais e de fim de tarde pela Boca do Rio, Palmares, Sargaçal, ria de Alvor e todos os arredores, viria a ver outros tantos: poupas, gaios, melros – que lá na escola são muitos – ostraceiros, garças várias, pilritos-das-praias (no Inverno), abelharucos, andorinhas-das-chaminés e dos-beirais, alfaiates, perdizes (esta Páscoa, a caminho da Barragem da Bravura), peneireiros, flamingos (na foz do Arade, junto a Portimão), galhetas (corvos-marinhos-de-crista), garajaus, guinchos, mochos-galegos (no acesso à A22), cegonhas (por todo o lado em volta do Monte Molião), e todos os outros de que agora não consigo recodar-me mas que me basta saber lá, livres, voando.

No entanto, e de entre todos, o que mais me traz impressionado desde a primeira vez que o vi e confirmei em consulta ao guia de aves, é o charneco (pega-azul). Parece que só existe no sul da Península Ibérica e no Japão e partes da China. Ninguém sabe explicar muito bem o porquê desta distribuição geográfica. Há quem responsabilize o recuo da última glaciação e a dança tectónica das placas terrestres. O que também me faz pensar como até a nossa eternidade é efémera aos olhos da natureza. O que me faz querer vê-los claramente voar enquanto o meu olhar possa captar-lhes o adejo das asas em azuis e terras.

Se de Setúbal trazia o acompanhamento dos roazes-corvineiros no resgate da minha alma, em Lagos descobri uma miríade de golpes de asa em cores sublimes que me rasgam um sorriso acriançado e imbecil de cada vez que me é dada a oportunidade de tal milagre. E aí lembro-me, estou em casa…

(Ilustrações de Killian Mullarney e Dan Zetterström, Guia de Aves, Assírio & Alvim, 2003)

Comentários

Fátima Santos disse…
e mais os lobos lá da serra, diga o meu amigo se não está a gente tão bem quando os grasnares e plillitos e voos aflitos e uivares noturnos, são apenas os destas criaturas?!
para além de cada uma a seu jeito, ser sempre, sem sombra de dúvida, uma beleza de criatura
quero eu dizer: não os há coxos, vesgos, tresandando e nem com caras de caso ou com verrugas
são sempre criaturas de deus as aves e os lobos e os outros irracionais...entre eles os cães e os gatos, claro...
éf disse…
e os porquinhos passeando na meia praia a meio da manhã. e as ovelhinhas passeando nos hiper-mercados, balindo à hora do almoço. e as cabrinhas lambendo a cal dos muros ao fim da tarde, quando regressam aos currais. de repente, bato as palmas e levantam todos voo, assustados.


pá, esqueceste-te das pegas rabudas tb são pássaros giros.
éf disse…
ou as pegas rabudas são essas pegas azúis de que falas? ás tantas, são.
Anónimo disse…
efe: Não, não são as pegas azuis. As pegas-rabudas são mais escuras (azul mesmo escuro, escuro) e têm uma área de distribuição mais vasta. em breve farei outro post sobre as ditas. Ah: e adorei as ovelhinhas balindo nos hipermercados, já aí vem esse corvejedo todo outra vez...
Anónimo disse…
Eu só queria dizer uma coisa...
- TOU FARTO DA MERDA DAS GAIVOTAS PORRA!!!
éf disse…
Ó "são gonsalo", vai aos ninhos sacar os ovos, que daqui a uns dois ou três anos a população delas diminui.
;)
Reino do Algarve disse…
"Minhas gaivotas"

Brincando ontem meio nu, pela areia,
minha infância pouco a pouco vi passar,
ela fugiu sem que eu me desse conta,
sonhando com voar.

Ir brincando com o vento,
além sobre a agua um momento.
Viver sonhando, à beira do mar,
junto as rochas,
um dia aprendi a voar,
aprendí a voar
como as minhas gaivotas.

E fugi longe dali
aquele dia,
sem olhar para trás julguei
que nunca mais voltaria.

Encontrei um cardo, uma flor,
um sonho, um amor, uma tristeza,
fui sozinho e logo fomos dois,
um beijo, um adeus, todo começa.

Outra canção, outra ilusão, outras coisas,
e farto já de andar
voltei a procurar
as minhas gaivotas.

E não as vi, elas também se foram
desse lugar que um dia nos juntou,
fiquei sozinho buscando na areia,
a infância que já passou.

Elas não hão de voltar mais,
elas a deixaram para trás,
debaixo da areia, à beira do mar,
ao lado das rochas
que não sabem voar,
que não sabem voar
como as minhas gaivotas.

E assim vou, mais triste vou
que nesse dia,
quando sem olhar para trás julguei
que nunca mais voltaria.


(Joan Manuel Serrat)
vieira calado disse…
Às pegas rabujas, como vocês lhes chamam, chamo eu (e outros montanheiros), charnecos.
Anónimo disse…
Eu chamo charnecos às azuis... Que são aquelas de que tenho uma ilustração n'o exilirado... eu já faço outro post... ;)

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