A CIDADE FANTASMA
Para Francisco
Castelo, a quem a Fototeca Municipal muito deve, e que no seu blog
Claustrofobias publicou talvez o único exercício de análise crítica estruturada
por mim visto em Lagos, e que me tinha como objecto - creio que em resposta a
dúvidas de alguns seguidores deste espaço.
E como esta ficção
fala de fotografia e de fotógrafos antigos, lembro que no Museu de Lagos se
encontra uma exposição de fotografia antiga da cidade, apresentada pela
Fototeca.
Da dimensão
excepcional deste texto espero a compreensão de administradores e seguidores do
blog.
(que vou utilizar como minha participação em DIÁLOGOS
LIDOS, esta terça feira no Teatro Experimental de Lagos)
Entre as duas filas de casas que se observam e vigiam através de olhos
de vidro semicerrados por brancas pálpebras de renda, corre uma ribeira que
agora não corre e embora seja fácil atravessá-la, dirigir-me a si não posso
porque você não responde. Já lhe chamei a atenção por palavras e gestos mas
absorvido que parece estar pelo que está fazendo, não dá sinais de ter
percebido que uma existência se manifesta no outro lado, neste lado. Concluo
assim que talvez seja inverno e que ao caudal da serra se junte agora a maré
oceânica o que torna intransponível a calçada do rio a uma aproximação a vau da
palavra.
Já ouvi a sua voz e vi os seus gestos mas, e disse muito bem, absorvido no
que estou a fazer não percebo o que queira. O barulho ensurdecedor destas águas
que já assim eram ao tempo do primeiro assentamento humano e que dizem que de
novo será, faz com que eu não saiba o que você diz, e pelo seu lado presumo que
aconteça o mesmo. É por intermitências. Neste instante, neste entre-eras
astronómicas, torna-se calçada, torna-se a rua um leito calcetado que pode ser
transposto pelo passo e pela palavra. Percebi um sentido no entrecortado das
últimas frases. Reconheceu que eu estava sentado num degrau que dava acesso ao
estúdio do fotógrafo Armando Segurado.
Foi mesmo isso. E havia ainda um outro fotógrafo nesta rua, António
Crisógono dos Santos. Cada um deles deixou registos da sua época.
Registos fotográficos do passado são fantasmas perversos minando a
convicção de existirmos neste presente. Sentado nesse poial é isso um sinal que
pretende dar da linha que confunde e une passado e presente? também é
fotógrafo?
Não sou, e concordo que todos nós nos assustamos mais com a fotografia
do que com a imagem em movimento. Agora reparo, ao começar esta frase, que a
primeira vez que me lembro de me ver em fotografia foi precisamente no primeiro
andar a que estes degraus acedem.
Terá percebido entre as coisas que eu disse, que sou chefe cozinheiro?
Isso não ouvi. Chefe de cozinha? Num restaurante da rua?
Já não faço cozinha profissionalmente, estou desempregado. Não sou daqui,
nem sei porque aqui vim, e dizendo com toda a seriedade, não sei se aqui estou
ou se já me fui embora. Ou sequer se aqui cheguei ou se chegarei um dia, ou se
terei que aqui vir por uma razão ou sem
nenhuma razão. E você é daqui?
Sou daqui. Sempre aqui vivi, e de
tal modo aqui vivi que comecei a sentir uma descontinuidade entre os meus pés e
o chão, o que é precisamente ao contrário daquilo que se poderia esperar, mais
provável seria um enraizamento vegetal. Não é uma descontinuidade muito
perceptível, mas o suficiente para sentir-me muito leve meio fantasmagórico.
Com toda a propriedade. Foi até a primeira fala que tive para si nesta
conversa entre nós, ora audível ora não. Perguntava-lhe eu se você era um
fantasma. Porque foi a primeira forma aproximada a uma forma humana que
encontrei. Fosse você um fantasma sentir-me-ia acompanhado. Só de nisso pensar,
uma onda de felicidade me percorre. Teria encontrado finalmente nesta cidade
fantasma um momento de rara excepcionalidade.
Ou o marejar da maré ou a torrencialidade das águas da serra ou a conjugação
das duas, ou a concentração extrema a que me obriga o que estou a fazer, ou a
minha limitada compreensão, tenho dúvidas se percebi o que acabou de dizer.
O que acabei de dizer é que, quando se está a fazer omelete, como é o
seu caso, se deve verificar ovo a ovo se os ovos estão todos em condições de
frescura. Por outro lado, diz-me a ampla exausta e inútil experiência de chefe,
que a temperatura das pedras da calçada, não será suficiente para a cozedura
desta coisa babosa que já se expandiu por toda a rua e que me cola ao chão os
dedos dos pés. Para si não é um problema já que, conforme referiu há pouco, os
seus gozam de uma inexplicável descontinuidade. Usando essa faculdade vejo que
se prepara para ir embora. E vai, deixando-me aqui sozinho colado ao chão? E
vai mesmo! de nada servem os meus apelos e gritos lancinantes.
Moro no Hospital Velho e para lá regresso agora. Oiço vozes gritos e
chamamentos. Não basta o horror da fotografia que infinitiza imagens e pessoas
que já não existem, como até os sons de tudo o que se passou desde o começo da
existência desta rua estão horrorosamente gravados nestas paredes. Entre eles o
desfile funerário de um marinheiro chinês do porta-aviões ancorado na baía
fazendo parte da esquadra do Mediterrâneo. Esta fotografia que contemplo, de
António Crisógono dos Santos, funciona como pauta: a cada detalhe observado
está acoplado o som correspondente.
deodato santos
fev. 13
Comentários
A expo no Museu já acabou no final de Janeiro.