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ETAPA FINAL DA EVOLUÇÃO HUMANA

 o apagacende da luz solar vermelha provocado pela interposição dos troncos dos pinheiros (ao amanhecer e solpôr):  o resto do tempo para dormir e sonhar (diurnamente) e para fazer parte do silêncio e sonhar (noturnamente)

 (fase final da evolução do homem quando toda a produção das suas necessidades for assegurada gratuitamente pela robótica)

 Passeio dos Poetas   Mata de Barão de São João  Out.20

2ªfeira UNIVERSIDADE DE LAGOS


JOSÉ CARLOS DA COSTA MARQUES

 Criador da Associação Campo Aberto e dos cadernos de poesia  DIV ERSOS

Representado no Passeio dos Poetas na Mata de Barão de São João, terra onde permaneceu (incansável andarilho) durante o tempo suficiente para idealizar Renascimento Rural e a publicação A Urtiga

 Triunfante Carnificina

 Uma voz profética ergueu-se da carnificina.

Voz que prega no deserto, voz que entre vozes se não ouve,

voz vinda do fundo abissal onde a raça humana se ergueu

do nada para o quase nada,

e aí se instalou na carnificina contínua a que chamam história

universal, local e indecifrável,

sem horizonte para além do sangue sobre a própria espécie

e sobre todas as outras, vegetais e animais

e virais e microbianas,

com ela obrigadas a conviver e a suportar

o insuportável jugo da espécie vencedora.

Que história sobrar pode das vencidas,

vermes, aranhas, borboletas,

pombos viajeiros, elefantes,

mansíssimos leões bravios e os tigres,

submetidas aos pés da vencedora humanidade,
no seu triunfo tiritando,
enregelada de pânico perante um inapreensível ser semivivo,

talvez por ela própria suscitado ou mesmo produzido?

O deserto, o deserto sem apelo, o fogo, a floresta incendiada,

os gelos derretidos, o sangue humano derramado,

o sangue vegetal ignorado,

o sangue mineral,

ó tu pedra que Pascoaes amou e quis chamar junto de si,

e tu irias,

que mais virá a sufocar a vida não humana,

a própria vida humana dos vencidos por outros humanos,

a barbárie glorificada pela ignorante cultura,

pela ciência desta época mitologia de amanhã,

a massa sangrenta a ressumar das esponjas que enxugam séculos

e milénios e ao nada nos conduzem,

na ponta da pacífica buldózer feita de aços bélicos reciclados,

e tão violenta como eles rasando vertentes, minas d'água e socalcos,

onde, quando, compreenderão os bárbaros

e os que se julgam civilizados,

quando entenderão o grito dos vencidos,

dos judeus bosquímanos, dos ciganos judeus,

dos lapões pastores de renas,

das inumeráveis abelhas e aranhas

sacrificadas,

de rastos diante da húbris da espécie triunfante,

vencedora,

glorificada,

cega perante toda a aniquilação que a transporta.

 

Porto, 14 de outubro de 2020

 

Verso 1 «Over the Carnage rose Prophetic a Voice», in Drum Taps, de Walt Whitman.

Verso 2 Uma voz entre vozes, Porto, 2017, livro do autor do presente poema.

Verso 26 «A ciência de uma época é mitologia para as próximas», Kepler,
citado por F. Carvalho Rodrigues, físico e professor, em prefácio de 7 de setembro de 2020
à reedição facsimilada do livro Vida, Espírito e Matéria,
de Erwin Schrödinger, traduzido por G. F. Sacarrão.

Verso 29 Alusão à palavra de ordem pacifista «fazer das armas arados».

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